Um relatório da Associação Juvenil para o Desenvolvimento Comunitário de Angola (Ajudeca) sobre os incidentes de Cafunfo, província angolana da Lunda Norte, hoje divulgado, aponta que o “desaparecimento de cadáveres” nas morgues locais e o surgimento de corpos em rios e ravinas “deturparam o número exacto mortes”. O surgimento dos corpos nos rios deveu-se, presume-se, ao deficiente “trabalho” dos jacarés.
Segundo o estudo, baseado na auscultação de 40 pessoas, entre efectivos da defesa e segurança, famílias afectadas e cidadãos comuns locais, aquela região viveu um clima de “terror, medo e recolher obrigatório” na sequência dos incidentes na versão oficial, massacres na versão de observadores independentes (entre os quais jornalistas do Folha 8) de 30 de Janeiro passado.
Sobre o número de mortos, resultantes dos incidentes, o relatório diz que 80% dos agentes da polícia (do MPLA) inquiridos no local relataram, depois de ensinados a contar pelos dirigentes do MPLA, ter constatado entre um e cinco mortos, enquanto os restantes 20% entre seis e 10 mortos. Ainda de acordo com observadores independentes terão sido dezenas.
O relato da polícia, refere o estudo, “é contrariado” por 80% das autoridades tradicionais, líderes religiosos e cidadãos comuns inquiridos que “afirmam ter morrido muitas pessoas e apenas 20% não sabe dizer o número, poucas ou muitas pessoas mortas”.
O Relatório de Auscultação sobre a Situação da Manifestação de 30 de Janeiro de 2021 em Cafunfo, foi apresentado, em Luanda, pela Associação Juvenil para o Desenvolvimento Comunitário de Angola (Ajudeca), autora do estudo realizado entre 15 de Fevereiro e 15 de Março.
A Ajudeca refere que as afirmações dos inquiridos sobre o número de mortes indicam que, tendo em conta o clima dramático e intimidador que se instalou em Cafunfo, leste de Angola, não permitia a circulação das pessoas.
A zona de Cafunfo “é rodeada de muitas e grandes ravinas, um rio tão grande, onde dias após dia foram aparecendo corpos e muito deles em estado de decomposição avançado, além dos corpos que desapareceram na morgue do hospital de Cafunfo e do Cuango”.
“Certos corpos foram encontrados à beira do rio, devorados pelos crocodilos e hipopótamos, deturpou o número exacto de mortos”, lê-se no estudo. “Independentemente de haver ou não especulação”, observa o relatório, “estamos diante da violação de um bem que é a vida”.
O estudo indica também que 90% dos agentes da polícia inquiridos afirmaram “ter entregue os corpos das vítimas aos familiares e apenas 10% disse não, enquanto que dos restantes grupos 60% disse não e apenas 20% confirmou a entrega dos corpos e 10% não sabe dizer”.
Em relação ao número de cidadãos e forças de segurança feridos na manifestação, o estudo afirma que “as autoridades policiais apontam entre um e 10 feridos ao passo que o restante grupo de inqueridos fala entre 21 e 30 feridos”.
Segundo a polícia do MPLA, cerca de 300 pessoas ligadas ao Movimento do Protectorado Português da Lunda Tchokwe (MPPLT), que há anos defende a autonomia desta região rica em recursos minerais, tentaram invadir, na madrugada de 30 de Janeiro, uma esquadra policial de Cafunfo, Lunda Norte, e em defesa as forças de ordem e segurança atingiram mortalmente seis pessoas.
A versão policial é contrariada pelos dirigentes do MPPLT, partidos políticos na oposição e sociedade civil local que falam em mais de uma dezena de mortos.
Zeca Mutchima, presidente do MPPLT, detido em Luanda, é apontado pelas autoridades como cabecilha deste alegado “acto de rebelião” que para os cidadãos locais era uma “manifestação pacífica”.
De acordo com os resultados da auscultação, 90% dos que responderam na categoria de agentes da polícia nacional, autoridades tradicionais e líderes religiosos afirmaram que os manifestantes no dia do incidente “usavam arma de fogo e brancas e o restante afirmaram ter identificado apenas dísticos e panfletos”.
Já a maior parte dos efectivos das forças de ordem e segurança, indica o estudo, “estavam munidos de armas de fogo”.
Mais de 500 pessoas, diz a Ajudeca, saíram à rua em 30 de Janeiro, em Cafunfo, com a finalidade de “realizar uma manifestação pacífica” o que “infelizmente terminou em derrame de sangue de muitos filhos da região e no desaparecimento de outros”.
Melhores condições de vida, visando a redução das assimetrias, o reconhecimento do MPPLT, a existência de uma entidade administrativa, a inclusão de um diálogo mais aberto entre o Governo e sociedade e a insegurança política na região são apontadas, pelo relatório, como algumas das motivações dos protestos.
A criação e implementação pelo Governo de “políticas mais inclusivas e que beneficiem verdadeiramente as populações, principalmente as que residem nas zonas rurais”, constam entre as recomendações do inquérito da organização não-governamental angolana.
Recorde-se, para bem do anedotário nacional e internacional (na vertente dos criminosos), que o Comandante-Geral da Polícia (do MPLA), Paulo de Almeida, defendeu o uso de “meios desproporcionais” para responder efectivamente contra ameaças ao Estado. E assim sendo, disse Paulo de Almeida, a resposta da polícia no caso de Cafunfo, bem como nos massacres de 27 de Maio de 1977, foi em legítima defesa.
O Comandante-Geral da Polícia Nacional afirma (como aliás fez o seu primeiro presidente, Agostinho Neto, ao manda massacrar milhares de angolanos em 27 de Maio de 1977), que na defesa da soberania de um Estado não pode haver proporcionalidade, como defendem as… pessoas.
“Isso é muito bom na teoria jurídica, nós aprendemos isso no Direito. O Estado não tem proporcionalidade, você quando está a atacar a unidade, o Estado, o símbolo, está a atacar o povo“, disse Paulo de Almeida, numa conferência de imprensa destinada a supostamente esclarecer os incidentes na região do Cafunfo, onde o MPLA mostrou mais uma vez – como já fizera Agostinho Neto em 1977 – que não está para perder tempo com julgamentos, razão pela qual mata primeiro e interroga depois.
Paulo de Almeida avisou que “aqueles que tentarem invadir as esquadras ou qualquer outra instituição para tomada de poder, vão ter resposta pronta, eficiente e desproporcional da Polícia Nacional” do MPLA. Por alguma razão a Polícia é tão forte com os fracos mas bate com as patas no mataco a fugir velozmente quando o adversário é forte.
“Você está a atacar o Estado angolano (leia-se MPLA) com faca, ele responde-te com pistola, se você estiver a atacar com pistola ele responde com AKM, se você estiver a atacar com AKM, ele responde com bazuca, se você estiver a atacar com bazuca, ele responde com míssil, seja terra-terra, terra-mar ou ainda que for um intercontinental, vai dar a volta depois vai atacar”, referiu com o brilhantismo de um gorila anão (sem ofensa para este primata) o Comandante Paulo de Almeida.
E, enquanto o míssil “intercontinental vai dar a volta depois vai atacar”, o Presidente João Lourenço (lídimo discípulo de Agostinho Neto e Eduardo dos Santos) confinava-se no silêncio conivente com a barbárie e com as explicações de quem, por ter uma espécie de cérebro no intestino, sempre que fala expele porcaria. É, claro, um direito constitucional que tem.
Compreende-se que o Presidente tenha dificuldades em encontrar alguém com o mesmo nível de Paulo de Almeida para pôr a comandar a sua polícia. Estamos, contudo, em crer que qualquer descendente do Nkan Daniel conseguiria falar do míssil “intercontinental que vai dar a volta depois vai atacar”.
O Comandante-Geral da Polícia Nacional rejeitou que haja conflito com o Movimento do Protectorado Português Lunda Tchokwe, que luta pela autonomia da região, afirmando que conflito só existe “com alguma coisa legalmente existente”.
“O que aconteceu foram elementos que foram atacar a nossa unidade, às quatro horas da manhã. Não foram fazer uma participação de uma ocorrência, não foram a um banco de urgência, que são as unidades que têm piquete para atendimento ao público. Foram com catanas, armas, meios contundentes, feiticeiros, para atacar a unidade“, disse Paulo de Almeida. Isto, é claro, sem referir os ataques dos catuituís que estavam nas mangueiras próximas e que foram avisados que Paulo de Almeida iria disparar mísseis intercontinentais, os tais que dão a volta (ao bilhar grande) e depois voltam a atacar…
“Eles não foram lá com lenços brancos, ninguém aqui perguntou como é que estão os nossos feridos, o oficial da polícia que apanhou machadada e catanada (…) o oficial das FAA que lhe deram catanadas, queimaram-lhe, ninguém pergunta, não são pessoas”?, questionou.
Por isso, se justificou o fuzilamento já que, segundo Paulo de Almeida, a acção da polícia foi de legítima defesa e “foi assim que houve essas mortes”. Registe-se que, apesar do seu brilhantismo oratório (tipo míssil intercontinental), o Comandante não esclareceu que antes de serem assassinados os angolanos estavam… vivos.
O Comandante-Geral da Polícia Nacional angolana disse que pelo lado das autoridades não estava a decorrer nenhum inquérito, apenas o processo-crime que foi aberto. Bem visto. Se, até prova em contrário (que só o MPLA pode determinar) todos somos culpados, não há necessidade de inquéritos. Isso só acontece em estados ditatoriais. Nas democracias e estados de Direito que são referência para o MPLA, os inquéritos não existem. Vejam-se os casos da Coreia do Norte e da Guiné Equatorial.
“Vou inquirir o quê? Eu não fui lá [Cafunfo] para fazer inquérito, fui lá para constatar a situação que ocorreu. Há um processo-crime que está a correr os seus trâmites legais, é aí e ponto final, não há inquérito. Se algumas organizações querem fazer isso já é um outro assunto, connosco não há inquérito, fique bem claro”, afirmou Paulo de Almeida. Eventualmente melhor do que Paulo de Almeida para chefiar a Polícia só mesmo uma reencarnação de Idi Amin Dada.
Recorde-se que o então Comissário Chefe da Polícia Nacional, Paulo de Almeida, dizia em Dezembro de 2015 que as últimas manifestações convocadas pelos partidos da Oposição tinham como objectivos a tomada do poder, um golpe de Estado, portanto, motivo pelo qual as forças de segurança as impediram. Nessa altura foi “capturado”, tal como agora na Lunda, um vasto arsenal bélico, com destaque para umas centenas de… cartazes contra o regime.
A Polícia Nacional afirma, reafirma, continua a afirmar ter provas mais do que cabais que provam que esses meliantes (hoje já são terroristas) pretendiam mesmo derrubar o regime. Ontem eram uns, hoje são outros, amanhã seremos todos nós.
Entrevistado pela Rádio Ecclésia sobre o balanço das actividades desenvolvidas pela Policia Nacional, eis que o então seu Segundo Comandante Geral sacou da pistola, perdão, da cartola, a mais bombástica revelação:
“Temos provas de que as orientações eram de um grupo chegar ao Palácio do Governo Provincial, outro grupo saía do Baleizão para chegar ao Palácio Presidencial. As provas recolhidas sustentam a tese de que o objectivo da última manifestação era o assalto ao poder”, garantiu (na altura ainda não estavam disponíveis os mísseis intercontinentais) Paulo de Almeida.
A revelação foi de tal modo estrondosa que, mesmo tendo passado muitos dias sobre essa tentativa, Europa e EUA, para além da Coreia do Norte, terão aconselhado o Presidente José Eduardo dos Santos a, imediatamente, fechar a Assembleia Nacional, prender (antes que eles se exilem) os dirigentes golpistas, instaurar um regime de excepção, com suspensão de todos os direitos civis, cancelamento de qualquer calendário eleitoral e imposição do estado de sítio com a necessária lei marcial.
Desconhece-se a razão pela qual, perante as declarações do Segundo Comandante da Polícia Nacional, Eduardo dos Santos não avançou com estas regras basilares de reacção à tentativa de golpe de Estado. Há quem diga, sem fundamento, que muitas delas já fazem parte do dia-a-dia do regime, sendo por isso desnecessárias.
Paulo de Almeida disse que “a lei permite que os cidadãos ou associações cívicas se manifestem. Os polícias não têm nada que impedir. Mas também a lei diz que essas manifestações têm regras, não podem ser próximas de locais de soberania, não podem ser manifestações que perturbem a ordem e a tranquilidade pública, violentas, que criam instabilidade e ameaçam o pacato cidadão que não tem nada a ver com a confusão”. E acrescentou, para que não restem dúvidas quanto à tentativa de tomar o poder pela força, que “as manifestações não podem ser agressivas, não podem ser desordeiras e nós só actuamos quando elas desrespeitam essas situações”.
Então ficamos todos a saber que a presença de mais de dois cidadãos junto aos locais de soberania é um indício de golpe, que se não forem vestidos com as cores do MPLA e dando vivas ao Presidente os manifestantes serão considerados agressivos, que se andarem a colar cartazes entram na categoria, potencialmente golpista, dos desordeiros.
Paulo de Almeida sublinhou também que a Polícia Nacional sabe quais são as intenções dos manifestantes. E sabe com certeza. Se até consegue saber o que os cidadãos pensam… E então no que pensavam esses golpistas? O Comandante responde: “O público pode não saber isso, mas nós sabemos, então agimos em conformidade. Eu sei que isso não vai agradar às pessoas mas a verdade é esta. Nós estamos aqui para garantir a segurança de todos”.
De todos é como quem diz. De todos os bons, os do MPLA, queria dizer Paulo de Almeida. Os outros, chamem-se Manuel de Carvalho Ganga, Cassule ou Kamulingue, não contam como cidadãos e, sempre que possível, devem entrar a cadeia alimentar dos jacarés.
Folha 8 com Lusa